Capítulo VI

-Há pessoas por todo o lado, praticamente nenhum sítio por onde sair daqui. - Disse uma voz cansada pertencente a um rapaz.

-Como eu pensava, atraímos demasiada atenção. Raios partam aqueles tipos, afinal eram eles que tinham o controlo da situação desde o início...

Do canto do apertado e confortável quarto, Sochin fitava os dois rapazes com uma expressão desprovida de vivacidade. Sentada no chão junto a um urso de peluche gigante, apertou a perna direita com força contra o peito e baixou o olhar, suspirando tão baixo que nenhum deles a conseguia ouvir.

No chão de soalho, junto a ela, estava uma camisola de alças rasgada de um tom roxo rosado. A parte do decote tinha sido quase completamente retalhada pela explosão de energia pura anteriormente. Pensou que era um milagre o seu corpo não ter sofrido qualquer ferimento. No entanto, o incidente deixara outro tipo de marca.

A sua mão deslizou do seu joelho e pela saliência da sua clavícula até os seus dedos tocarem de leve no meio do seu peito por baixo da roupa. No local onde antes estava uma área de pele suave e morna encontrava-se agora um objecto igualmente morno mas perturbadoramente sólido e geométrico. O seu volume não sobressaía de todo, tanto que até uma camisola fina podia mantê-lo escondido, mas a pedra rigidamente lapidada transmitia uma sensação horrivelmente errada. O local onde a Pedra se unia com a pele estava coberto pelo que parecia ser uma discreta orla dourada formando uma moldura em redor da brilhante pedra em forma de losango.

A sua garganta pareceu-lhe muito seca e apertada ao tentar engolir o sabor amargo que tinha na boca e baixou ainda mais a cabeça. Tentar conter a sua ansiedade parecia apenas fazer a Pedra brilhar mais intensamente através da sua roupa.



Sentia-se despida, totalmente incapaz de controlar quanto das suas emoções os outros podiam ver.



Kuroi parecia preocupado ao falar com o seu irmão. Tentava manter-se a par da conversa para se distrair do novo e desconhecido elemento no seu corpo.

-Então, o que fazemos agora? Ou melhor, o que é que queres fazer agora? - Makoto voltou-se para o mais velho falando num tom acusatório e sem expressão no seu rosto.

-Isso vai depender do que... - O rapaz de cabelo castanho voltou-se para Sochin de um só movimento - ELA quiser fazer agora.

A rapariga olhou para ele, confusa.

-...Eu só quero afastar-me disto tudo...

-Eu seu que não é fácil. Se eu soubesse que isto ia acontecer quando eles usaram a Pedra...

-DEVIAS ter sabido!! - Gritou Makoto de repente, enchendo o quarto de silêncio nos segundos que se seguiram. Só então sentiu no seu peito uma dolorosa sensação de constrangimento, como se fosse explodir, e apercebeu-se de que tinha falado demasiado alto e abruptamente.




-...É verdade que sabia que era possível, mas a probabilidade era extremamente baixa. No entanto, tenho de pedir desculpa. Pensei que pudesse impedi-los de usar a Pedra de todo.




-Pedir desculpa agora não muda grande coisa...

-Pois não. Por isso é que preciso da decisão da Sochin-san o mais depressa possível.

-Que... decisão? - A rapariga perguntou lentamente.

-A Pedra não é perigosa, mas escondê-la para o resto da vida vai provavelmente ser um pesadelo. Aulas de Educação Física, exames médicos... eventualmente também vais querer ter "alguém", certo?

-O-o que é que estás a dizer numa altura destas?! - A rapariga guinchou nervosamente e as maçãs do seu rosto começaram a ficar vermelhas. - Isso não é da tua conta!!


Kuroi forçou um sorriso ensombrado.


-Realmente, não me diz respeito. Mas eu sei que vocês os dois depositaram a vossa confiança em mim de uma forma ou de outra, e eu mesmo assim deixei isto acontecer. Mas... em Dreffel de certeza que há uma forma de remover essa Meia Ibniad do teu corpo sem deixar marcas.

-Eu sabia onde esta conversa ia dar! Tinhas tudo pleaneado desde o início, não tinhas? - Exclamou Makoto - Arrastar-nos para Dreffel contigo! Desde o momento em que me perguntaste até onde estava disposto a ir...

-Não tinha. Para ser sincero, se vos 'arrastar' comigo só me vão atrasar, e não tenho nada a ganhar com isso. Quando te perguntei isso estava a pensar na possibilidade de um de vocês ser tomado como refém, mas eles nem sequer precisaram disso.



-Ainda assim, estás à espera que voltemos a confiar em ti...?! Como é que sabemos se nos estás sequer a dizer a verdade?



-Nii-chan... - Murmurou Sochin.



-Deixar-vos vir comigo é tudo o que posso fazer para atenuar pelo meu fracasso. Só depende da Sochin-san aceitar ou não. Estar comigo pode ter os seus riscos, e vai demorar algum tempo, mas no fim de contas ela vai ver-se livre daquela Pedra e eu desapareço de vez das vossas vidas.

-E se falhares novamente, como hoje? E se acabarmos mortos enquanto estamos lá? - Insistiu Makoto. Apesar de soar rude ou desconfiado, os pingos de suor no seu rosto e a hesitação nos seus olhos denunciavam que não sentia realmente o que estava a dizer.

-Não vou negar, existe a possibilidade de eu falhar. Tal como tu ou qualquer outra pessoa em determinadas situações.

-Mas se tivesses mesmo dado o teu máximo, tudo isto...

-Tudo isto o quê? Não sou nenhum grande estratega. A minha inteligência mal está acima da média humana. Posso tomar decisões erradas e avaliar mal situações às vezes. Mas quem está errado aqui és tu se esperaste de mim algo que nunca prometi. - Interrompeu-o Kuroi.


Desta vez, o seu olhar estava diferente. Era muito mais sério.


-O conceito ridículo que os humanos têm de uma Divindade... Como é que a culpa é minha por não estar à altura dele? Acreditas mesmo que há um ser perfeito algures cuja bondade supera a compreensão humana? Achas mesmo que algo como a perfeição existe sequer no Universo?!




O rapaz fitou-o e novamente à irmã, sem palavras.




-Lamento desapontar, mas eu sou assim. Um ser defeituoso e semelhante aos humanos com capacidades estranhas. Sou o tipo de imperfeição em quem vão ter de confiar se a tua irmã decidir viver uma vida normal como se isto nunca tivesse acontecido. E podes crer que vou dar o meu melhor para isso.



Os dois voltaram-se para Sochin, aguardando uma resposta. À medida que os momentos passavam, a luz que emanava da Pedra ia-se tornando mais intensa até que se tornou vagamente visível através da sua camisola.

-Se é assim, estou a contar contigo, Kuroi-kun. - Respondeu.








--Hey, Sochin... Tens mesmo a certeza disto? Ainda temos tempo de tirar o bilhete que deixámos à Mãe e ao Pai e fingir que não aconteceu nada... - Disse Makoto, com os olhos presos no chão. - Sabes, eles vão chegar a casa muito em breve assim que souberem que houve incidentes no parque, já que é perto daqui...

Não estava a agir como era habitual, e Kuroi sabia bem disso. A luta há pouco tempo atrás tinha-o deixado nervoso.

-Também tenho medo... - Respondeu a rapariga, cobrindo instintivamente o peito ao proferir estas palavras. - Mas apesar de ainda só ter passado perto de uma hora eu sei que não quero viver com esta coisa no meu corpo para sempre. Mesmo que seja perigoso... Nii-chan, não tens de vir.



As suas palavras foram como um estalo na cara para o rapaz.



-...Não, eu vou! Não sou nenhum cobarde, não me vão deixar para trás assim! - Respondeu o loiro, com um olhar de determinação. Com estas palavras, todo o seu nervosismo pareceu desaparecer.

Kuroi assentiu com um leve sorriso de alívio.

-Então está resolvido.

Sochin assentiu de volta e voltou as costas aos dois rapazes, tentando concentrar-se. Os dois irmãos pegaram nas suas mochilas do chão e o quarto da rapariga encheu-se de silêncio durante alguns segundos enquanto esta tentava recordar-se do que acontecera quando Wyatt, o semideus ruivo que servia de apoio a Mera e Genji, forçou uma reacção entre ela e a Pedra de Ibniad.




"Uma emoção forte o suficiente deve servir.", pensou. "Nesse caso..."




Concentrou-se ainda mais nesse momento, até o terror que havia sentido há cerca de huma hora atrás, antes de ficar inconsciente, lhe parecer tão real como se estivesse a acontecer de novo.Tentando conter um gemido, estendeu as mãos em frente e o ar entre elas começou a distorcer-se. A Pedra no seu peito começou a brilhar com tanta intensidade como antes, iluminando todo o quarto.

Apesar de ser a segunda vez que presenciava o acontecimento, Makoto assistia com o mesmo assombro à luz que os rodeava concentrar-se toda num único ponto e depois expandir-se numa espiral de partículas luminosa e suficientemente grande para lá entrarem.

-DREFFEL, PREPARA-TE PORQUE ESTAMOS A CAMINHO!! - Gritou, sacudindo assim a restante tensão do seu corpo e mente. Respirou fundo, como se fosse mergulhar, e saltou sem hesitação para o interior.


Kuroi e Sochin trocaram olhares, nenhum deles muito certo de como reagir. Kuroi encolheu os ombros e apressou-se para dentro da falha atrás do mais novo.


Sochin deu um passo em frente, mas então deteve-se. Deitou um olhar ao seu quarto, um local simples e arrumado com uma prateleira para manuais escolares e muitos animais de peluche que pareciam olhar para ela de volta. Era o lugar onde se sentia realmente confortável...




O som de chaves a abrir a porta da frente chegou aos seus ouvidos enquanto estava distraída pelos seus próprios pensamentos, e ouviu as vozes dos seus pais. Provavelmente tinham vindo para se certificarem de que ela e Makoto não tinham sido apanhados no incidente.



Os seus olhos encheram-se rapidamente de lágrimas. Cobriu firmemente a boca, contendo outro gemido, e correu para o interior do portal, ouvindo um zumbido enquanto este se fechava sobre si.

Ao contrário do que esperava, não havia nenhuma terra ou céu. Nem sequer um chão para pisar. Os três estavam sobre algum tipo de plataforma invisível que não fazia nenhum som sob os seus pés, e em redor tudo estava cheio de partículas brilhantes contra um espaço escuro. Makoto tentou apanhar uma dessas partículas, mas ela desfez-se assim que lhe tocou.



-Isto é... Dreffel? - Perguntou ela, enxugando as lágrimas dos olhos e tantando habituar-se à luz.


Kuroi Sorriu.


-Isto é só uma passagem. Acho que podes chamar-lhe o próprio Tecido Dimensional. - Disse o rapaz, olhando também ele em volta de forma discreta. - Já faz muito tempo que estive aqui.

-Então, se continuarmos a andar em frente vamos chegar ao outro lado? - Arriscou Makoto, seguindo outra partícula luminosa com o olhar e enfiando as mãos nos bolsos enquanto seguia o mais velho.


O rapaz de cabelo castanho assentiu.

-Mas espera lá... se Dreffel é um Mundo inteiro como a Terra, isso não significa que podemos ir parar a qualquer sítio?!

-Esse seria de facto o caso se cada Mundo não tivesse lugares especiais onde a energia está concentrada e que atraem falhas. No caso de Dreffel, são os treze templos espalhados pelo país de Suderion, a Terra Santa. - Informou Kuroi. - Apesar de ainda haver alguma incerteza, vamos sem dúvida sair nas mediações de um desses templos... O que é uma feliz coincidência tendo em conta que são exactamente onde eu tenho de ir.

-Isso é tudo muito prático, mas... então e a parte em que é suposto ajudares-me a livrar DESTA coisa?! - Perguntou Sochin, colocando uma mão contra o peito.



O semideus deu uma leve risada, parou por um momento e virou-se para os dois irmãos.



Não te preocupes. Não vos vou trair, nunca. Sabes, visto que vamos viajar existe uma grande probabilidade de nos cruzarmos com alguém capaz de te ajudar. - Disse, afagando levemente a cabeça da rapariga.

Ela fez beicinho.

-Espero bem que sim!

-Como disse, muito provável. Também podemos procurar nas horas vagas para tornar tudo mais rápido. E já agora, é bom ver que estás outra vez a agir como tu mesma.

-...O que é que isso quer dizer?!

-Egocêntrica, desconfiada e como uma pitinha. Um verdadeiro alívio. - Respondeu Kuroi com um sorriso de provocação.

-Seu grande...!!

-Hey, olhem! Aquilo não é o outro lado?  -Interrompeu Makoto, apontando em frente.



Mais uma vez, avistaram uma concentração de partículas em espiral. No entanto, desta vez o outro lado era vagamente visível através do centro. Nos seus olhos aparecia como uma visão pouco nítida em tons de branco, vermelho e dourado.

O rapaz suspirou levemente de alívio ao constatar que os dois tinham parado de se provocar e estavam agora concentrados em chegar ao outro extremo da passagem.

Kuroi sentiu um ligeiro arrepio percorrer o seu corpo à medida que se aproximavam.




"Finalmente... Estou de novo em casa!!"



Makoto e Sochin apressaram o passo, agora mais curiosos do que assustados. À medida que se aproximavam, o espaço que podiam ver através da falha pareceu alargar-se um pouco.

-Tenham cuidado agora, não sabemos exactamente onde vamos parar. É melhor ficarmos juntos ao sair. - Aconselhou Kuroi, alcançando-os.






Ao atravessar o fim da passagem, foram engolidos por outra concentração quase sólida de luz que os cegou por alguns segundos. Ouviram o zumbido que indicava que a falha se estava a fechar, e cada um pestanejou várias vezes antes de se aperceberem do espaço que os rodeava.





De repente, sentiram ainda mais calor do que em casa. Era claramente de dia, mas o espaço em que se encontravam estava escuro pois as entradas de luz no tecto estavam cobertas por panejamentos carmesim com bordados em fio de ouro. Estavam na base de cinco longos degraus curvos que levavam a uma plataforma no centro da qual estava uma construção semelhante a um altar, e no topo deste estava um pequeno cofre de madeira coberto por uma redoma. Na direcção contrária estava um corredor tapeteado com o mesmo tecido carmesim e ladeado por colunas de pedra cor de marfim lisas e de base redonda unidas por uma arcada. Nos arcos estavam penduradas longas cortinas igualmente carmesim com os mesmos bordados que transmitiam uma grande elegância. Apesar de tudo ter um ar acolhedor, a atmosfera era tensa.





Foi Sochin quem quebrou o silêncio de entre os três.

-Este sítio é...?

-Não se mexam, intrusos!! - Interrompeu-a uma voz masculina, firme e que não lhes era familiar. - Este é um local sagrado. Revelem as vossas intenções ou saiam daqui imediatamente!

Detrás de uma das colunas, um homem novo apressou-se para o centro do corredor com uma besta carregada nas mãos. Ao início parecia um humano normal, mas as marcas esverdeadas nas maçãs do rosto, nariz, pulsos e tornozelos davam-lhe uma aparência pouco comum. O seu cabelo era laranja ardente cortado curto e os seus olhos cinzentos claros. Usava um robe branco com decorações carmesim e um fio ao pescoço com um medalhão dourado. A sua expressão era pouco amigável, mas as suas mãos tremiam ao segurar a besta. Era inexperiente com ela.

-Vou repetir, revelem as vossas intenções! - Reforçou. - O que é que miúdos como vocês acham que estão a fazer, a aparecer de repente junto à Relíquia sagrada da nossa cidade? Planeavam roubá-la?

-P-por favor acalme-se... - Pediu Makoto, erguendo as mãos no ar.

Os outros dois ergueram também as mãos, na esperança de resolver calmamente a situação.

-Na verdade... - Continuou o loiro. - Não queríamos vir para aqui especificamente! Nós viemos ainda agora da Terra e...

-O rosto do homem contorceu-se subitamente numa expressão ainda mais ameaçadora.

-Gaians no Templo?! IMPERDOÁVEL!! GUARDAS, APANHEM-NOS!!

-O quê?! Nós não fizemos nada de mal!! - Reclamou Makoto, olhando em redor. Várias figuras de armadura e com roupas do mesmo motivo branco e carmesim surgiram detrás das cortinas e rodearam-nos com machados de haste em mão. Tentou correr através da sua formação, mas Kuroi segurou-o firmemente pelo braço.

-Não tentes fugir, só vai piorar as coisas. - Disse. - Não fizemos nada, podemos resolver isto de forma pacífica.

Os guardas rapidamente formaram um círculo em redor do grupo com os seus machados de haste apontados para eles. Um dos guardas, com uma armadura um pouco mais decorada, virou-se para o homem de cabelo laranja.

-O que fazemos com eles? Não chegaram a fazer nada, mas...

-Prende-os por agora. - Disse o homem, baixando lentamente a besta da posição de disparo. - Vamos decidir o que fazer com eles quando a Matriarca chegar. Tolos, interferir com o Templo numa altura destas...

O líder dos guardas assentiu e os outros começaram a espicaçar o grupo com os seus machados de haste para os fazer mover.

-Hey, não é preciso serem brutos! Basta dizerem o caminho e nós vamos sem reclamar, está bem? - Exclamou Makoto. - Isso é uma maneira bastante rude de tratar inocentes...

-Eles não podem falar connosco, Makoto. Guardas de Templo, incluindo o seu Capitão, são postos sob um selo que os impede de falar com os seus prisioneiros. - Disse Kuroi, começando a caminhar. - Serve para os impedir de começarem uma conversa e se distraírem.

-Eh, isso é bastante rígido...



À medida que caminhavam pela ala traseira do edifício, pareciam escassear cada vez mais as janelas de onde pudesse entrar qualquer luz. No mínimo, pensaram, a temperatura estava mais agradável naquela zona, mas quando começaram a descer uma escadaria num túnel estreito foram surpreendidos por um cheiro fortíssimo e desagradável vindo de baixo.

-Hey, Kuroi-kun... - Sussurrou-lhe Sochin. - Não podes simplesmente dizer-lhes que és...

-Nem pensar. Tenho de manter isso em segredo para evitar atraír demasiada atenção, caso contrário podemos encontrar perigo mais depressa do que o necessário. - Murmurou ele de volta.

-Como é que este cheiro só por si não conta como um perigo?!

Ao ouvi-la levantar a voz, um dos guardas ameaçou-a com o seu machado de haste. Tiveram de permanecer em silêncio no resto do caminho.

Kuroi, Makoto e Sochin foram lentamente conduzidos às escuras para uma espécie de cela pelos Guardas armados, sob a supervisão do seu Capitão. A única fonte de luz era uma tocha que ele segurava. Enquanto a porta metálica estava a ser trancada, Makoto foi-se apercebendo cada vez mais claramente de que o cheiro era carne podre e um arrepio percorreu-lhe a espinha.

-Hey, pelo menos digam-nos quando é que vamos poder sair! - Gritou para a porta. - Este sítio cheira a falta de senhora das limpezas!

-Ouviram o Irmão Samal... Quando a Matriarca regressar. - Respondeu a voz do Capitão do outro lado. Então, através do respirador da porta, observaram a luz da tocha a desvanecer juntamente com o som de muitos passos escada acima.



-...Ele falou.








-Isto não é exactamente aquilo que eu esperava como boas-vindas... - Resmungou Sochin. - Também não me pareceram muito complacentes, o que é que vamos fazer se eles nos quiserem deixar aqui fechados por, sei lá, um mês?

-Também não estava à espera... Com a nossa sorte, fomos parar mesmo ao pé do Altar de um Templo. Vamos ter de seguir as ordens deles até acreditarem na nossa inocência... Deve correr tudo bem desde que não aconteça nada de suspeito até a Matriarca chegar. Não deve demorar assim tanto...

-Espero bem que não, porque estou a ficar com fome... - Queixou-se o loiro.

-Como é que consegues ter fome com este cheiro? É insuportável! - Respondeu a irmã.

-Oh, por favor, importam-se de calar a boca?!  Já disse que vai correr tudo bem desde que não façamos nada susp...



Antes que Kuroi pudesse acabar a frase, foi interrompido pelo som de um impacto enorme vindo do outro lado da parede de pedra exterior. Cada vez mais rodeados de poeira, sentiram uma lufada de vento morno pelos seus corpos e os seus olhos começaram a doer devido à entrada repentina de luz. A parede traseira da cela desfez-se como se fosse feita de cubos de açúcar.



Uma voz ruidosa e um pouco rouca rindo de forma maníaca ecoou pelos seus ouvidos quando a poeira finalmente começou a assentar e Kuroi teve um pressentimento terrível sobre a situação que tinha acabado de ser criada.

-Então são estes os gaians que tentaram roubar a Relíquia ainda há pouco? Não parecem grande coisa, mas tenho de admitir que foi uma tentativa bastante arrojada. Estou impressionado, ouviram? Muito impressionado!

-Eh, quem é este tipo... - Balbuciou Makoto por entre tossidelas ligeiras.

-Queres saber quem eu sou? Nunca ouviste falar de mim, gaian? Muito bem, irei elucidar-te!! - Respondeu a voz, aparentemente ignorando o facto de que se tratava de uma pergunta rectórica. Finalmente o pó assentou e puderam ver quem rebentara com a parede.


Ele não parecia muito adulto, mais ou menos da mesma idade que Kuroi. A sua pele fortemente queimada pelo sol, atravessada por várias marcas na forma de faixas vermelho-sangue, destacava os enormes olhos vermelhos que atraíam facilmente a atenção . O seu cabelo ondulado era de um cinzento muito escuro, quase preto, e a maior parte estava coberto por um lenço largo cor de marfim. A sua franja, longa e desalinhada, dava-lhe um aspecto selvagem e juvenil. Usava um longo colete vermelho com fecho de couro e fivelas sobre uma túnica branca de mangas largas, um lenço curto verde-pálido que lhe cobria o pescoço e parte do queixo, bandas de pulso da mesma cor do seu colete, calças azuis pelo tornozelo feitas de um tecido leve e sandálias de couro castanho claro. Estava de pé sobre a pilha de detritos criada pela explosão com os braços cruzados e uma expressão de triunfo estampada no rosto.

-O meu nome, ouçam bem, é Hamed Al-Faahyir! Rei de todos os ladrões da vasta região de Sayden e da sua área de influência! Apesar de os vossos métodos serem defeituosos e ineficazes, devo admitir que teletransportar directamente para dentro do Templo tem estilo. Assim, concedo-vos o direito de se juntarem a mim como meus subordinados!! - Gritou, olhando para eles como um pai orgulhoso.



"Eh, encontrámos alguém mais barulhento que o Nii-chan..."


"Qual é a da atitude deste gajo? Foi o ego dele que esmagou a parede?!"


Só Kuroi parecia demasiado confuso para enfrentar o seu libertador não solicitado. Uma tentativa de fuga significava terem Guardas no seu encalço vindos de toda a cidade, mas ao mesmo tempo significava que não podiam permanecer naquele local por muito mais tempo. Para piorar a situação, a cara e o nome daquele rapaz eram-lhe estranhamente familiares. Incapaz de espreitar para além do que restava da parede, olhou para ele e acenou discretamente para chamar a sua atenção.

-Quantos homens tens contigo? Consegues escoltar-nos para um sítio seguro? - Perguntou.

-Estás mesmo a pensar ir na conversa deste tipo? - Murmurou-lhe Sochin. - Tem ar de ser a última pessoa que queremos ter por perto se vamos ficar longe de sarilhos!

Ingnorando o comentário dela, Kuroi continuou à espera de uma resposta.

-Então estás a pensar rasparmo-nos daqui à grande, hã? Boa, gosto disso! - Respondeu o rapaz de olhos vermelhos, afastando a franja do rosto com um gesto rápido e falando com as mãos sobre o cinto. - Eu cá vim por minha conta e só trago comigo uma adaga, mas posso garantir que sou a escolta mais segura que alguma vez terão!

-Muito bem então, por favor leva-nos para fora daqui! Depois disso falamos! - Respondeu Kuroi.

-Senpai, perdeste a cabeça? Este tal Hamed pode ter acabado de nos salvar, mas disse que é um ladrão! Como se tudo o resto acerca dele não parecesse estranho o suficiente, ir com ele vai tornar-nos ainda mais suspeitos! - Sussurrou Makoto para o amigo enquanto trepavam pela parede destruída para o exterior.

Depois de ambos saírem, Hamed ofereceu-se para ajudar Sochin a subir de uma forma exageradamente cavalheiresca.

-Não te preocupes.  -Respondeu Kuroi com um sorriso. - Tenho um pressentimento bastante bom acerta disto.

-Eh, assim do nada...

Capítulo V


O som de uma porta a abrir-se interrompeu Sochin e Mera enquanto falavam uma com a outra sentadas no sofá. Coçando nervosamente a parte de trás da cabeça através do cabelo loiro embaraçado, Makoto vagueou até à sala de estar.

-Eh? Kohaku-san? ...Que surpresa!

Mera fitou-o e sorriu acolhedoramente.

-Olá! - Cumprimentou. - Desculpa se a nossa conversa te acordou. O Kuro-chan está aí, não está?

Makoto assentiu.

-Ele está... emm... ainda está a dormir, disse-me que se calhar ia dormir a manhã toda.

-...O que mais seria de esperar desse tipo. - Sochin resmungou num tom não muito sério.

Makoto forçou um sorriso e encostou-se descontraidamente à parede.

-Não vos apetece ir dar uma volta algures? Hoje parece um bom dia para passear. - Disse o rapaz. - Além disso, não quero acordar o Kuroi ao jogar videojogos no quarto.

As duas raparigas entreolharam-se e assentiram.






-Que parque tão bonito! Não acredito que ainda não tinha estado aqui desde que me mudei... - Exclamou Mera, respirando fundo.

O parque da cidade em redor do grupo estava repleto de flores desabrochadas. No centro havia uma grande fonte de pedra que lançava no ar frescas gotas de água cristalina. Do planalto onde a cidade estava conseguiam ver o mar calmamente banhando a terra com as suas ondas. O céu estava de um azul limpo, sem qualquer nuvem à vista, e toda a paisagem ava a sensação de poder pertencer a alguma propaganda turística.

-Por falar nisso... Kohaku-san, porque é que te mudaste para aqui? - Perguntou o loiro, ajustando casualmente um par de óculos de leitura rectangulares sobre a cabeça. Não tinha o hábito de os usar, mas não podia sair sem os trazer consigo.

A expressão de Mera tornou-se repentinamente séria, tal como acontecia por vezes com Kuroi. Olhou-o nos olhos, depois para Sochin e finalmente dirigiu o seu olhar para a frente.

-Presumo que seja a altura certa para saberem... O Kuroi provavelmente já vos falou de Dreffel... o nosso mundo.

Sochin olhou-a com surpresa. Makoto esperou que ela continuasse a falar.

-Sim, tanto eu como ele nascemos lá. - Continuou a jovem, olhando em redor para se certificar de que ninguém os ouvia. - Isto pode parecer ridículo, mas nós somos semideuses e fomos banidos de Dreffel apenas por termos nascido. Existem mais como nós, também.



S-Semideuses?!

O coração de Makoto pareceu parar por um segundo.

É isso que o Kuroi-senpai é?



-N-não pode ser! Mesmo que o que estás a dizer seja verdade, o que é que nós temos a ver com tudo isso? - Perguntou Sochin, ao mesmo tempo fascinada e aterrorizada.
Ao contrário de Kuroi, Mera não havia ainda revelado qualquer tipo de habilidade especial. No entanto, a sua presença era agora tão forte que a mais nova podia jurar ser capaz de a sentir do outro extremo do parque.


Mera abrandou o passo enquanto procurava as palavras certas para responder.


-Há onze anos atrás, as Ninfas de Dreffel que nos deram à luz a nós, semideuses, pereceram sem ninguém saber o porquê. A mãe do Kuroi, a minha própria mãe... Depois de lhes ter sido retirado o seu poder como pena por se apaixonarem por seres humanos, creio que a sua força vital desapareceu aos poucos como consequência. Tudo o que resta delas agora são aquilo que é conhecido como as Treze Relíquias, suportes físicos que contêm a essência do seu poder. Mas...



-Mas? - Perguntou Makoto.



-Apesar de ser suposto nós reclamarmos essas relíquias de modo a completar o nosso poder e continuar a missão das nossas mães como guardiães de Dreffel, o Kuroi tem outros planos para esses suportes. Ele pretende destruir tantos quantos puder para os seus próprios objectivos egoístas e impedir-nos a todos de completar a missão para a qual nascemos. É por isso que não posso permitir que ele regresse a Dreffel antes de todos nós termos reclamado as Relíquias... e isso significa mantê-lo afastado de qualquer Medium com que ele se possa cruzar.

Sochin continuava a ouvir as suas palavras, mas não estava segura de como reagir. Não confiava em Kuroi, mas não pensava nele como uma má pessoa.

-Tal como eu e os meus companheiros, os poderes dele são enfraquecidos na Terra e não lhe é possível abrir um portal sozinho. Ele precisa de um Medium humano e uma Pedra de Ibniad, um catalizador mágico de grande poder que só pode ser encontrado no nosso mundo, para abrir uma falha no Tecido Dimensional até Dreffel. O plano dele é provavelmente roubar a Pedra que eu possuo assim que consiga convencer um de vocês a ajudá-lo... O que é, aliás, a razão porque vim ter com vocês.

-Para te certificares de que não o ajudamos? - Atreveu-se Sochin finalmente a perguntar.

-E para vos oferecer um acordo. Se me disserem qual de vocês é o Medium e concordarem em abrir um portal para mim e para os meus companheiros, nós prometemos manter o Kuroi afastado de vocês e nunca irão voltar a ouvir falar deste assunto. Podem continuar com as vossas vidas como qualquer outra pessoa.



E se recusarmos?

A questão surgiu na cabeça de Makoto, mas o rapaz permaneceu em silêncio. Tinha um pressentimento de que não iria gostar da resposta.



Enquanto continuavam a andar, Sochin parecia ponderar sobre o acordo. Em quem deveria confiar? Poderia sequer confiar em algum dos semideuses? Eram realmente semideuses, como Mera dissera, ou era tudo um bluff para os assustar? E quem eram estes “companheiros” de quem a jovem falava?

A rapariga de olhos cor de âmbar pareceu aperceber-se da hesitação na sua expressão e retirou algo da sua mala.

-Aqui. - Disse, mostrando aos dois discretamente uma gema de forma estranha cuja cor parecia mudar dependendo do ângulo de visão. Tinha um brilho suave que, sem dúvida, não pertencia à Terra e parecia irradiar uma forma misteriosa de energia.


-É... é tão bela... - Desabafou a mais nova.


-Esta é a forma mais pura de uma Pedra de Ibniad. Se lhe tocares, serás capaz de saber que o que vos contei é verdade.

Makoto colocou a mão sobre o ombro da irmã, como que a avisá-la para ter cuidado.

-Não há nada a temer. - Disse Mera, com uma voz baixa mas cheia de convicção, quase como um desafio murmurado.

Sochin aproximou lentamente a sua mão direita da Pedra e observou com espanto que o seu brilho parecia tornar-se mais poderoso à medida que a distância se encurtava. Makoto mordeu o lábio e olhou nervosamente em sua volta. A expressão de Mera pareceu alterar-se para um sorriso de satisfação por meros instantes.


Sim, mostra-me o que podes fazer, Medium!!


Num piscar de olhos, algo atingiu a mão de Mera e fê-la deixar cair a jóia e recuar dois passos. Parecia uma esfera de energia, mas era totalmente negra e algo nela parecia estranhamente vazio durante o segundo que durou.

Os três viraram as cabeças na direcção de onde viera e a figura de um jovem correu para a Pedra de Ibniad, apanhando-a do chão entre eles e dando então meia-volta e revelando o seu rosto enquanto a enfiava no bolso. Emoldurados por ondas de indomável cabelo castanho avermelhado, os olhos verdes de Kuroi reluziram com ansiedade enquanto fitavam os três com um misto de alívio e desapontamento.

-Desculpa, mas vou ficar com isto.

-Devolve a Pedra, maldito ladrão! - Gritou Mera, perdendo repentinamente a compostura. Os seus olhos de âmbar brilhavam furiosamente sob a luz que recaía neles através das copas das árvores, e os dois irmãos podiam jurar ter sentido calor a emanar do seu corpo enquanto falava.

-Ladrão? Não devo ser muito pior do que quem quer que seja que te vendeu esta Pedra, Mera. Agora se pretenderes continuar a manipular esses dois humanos para confiarem em ti, vais ter de me tirar esta Pedra de Ibniad primeiro.

-Ai sim, quem disse? - Uma voz que não lhes era familiar soou por trás de Makoto e Sochin. Quando se viraram, um rapaz pouco mais velho que Kuroi e Mera apareceu de trás de um arbusto alto. Vestia um blusão de couro leve e o seu cabelo castanho escuro estava puxado para trás e afastado da sua testa com a ajuda de uma faixa de tecido e sorria vitoriosamente. Junto a ele estava outro jovem, aparentemente ainda mais velho, cujo cabelo ruivo estava cuidadosamente apanhado num curto rabo-de-cavalo. Apesar do tempo, usava uma gabardine longa e castanha sobre a t-shirt e as calças de ganga e a sua expressão parecia indiferente. Aproveitando o momento de surpresa de Kuroi, o mais velho segurou Sochin no lugar ao mesmo tempo que Mera recuava para imobilizar Makoto. O rapaz do blusão de ganga colocou-se em frente a eles com as mãos enfiadas nos bolsos e analisou Kuroi com os seus olhos penetrantes de um castanho claro e seco.

-Desta vez foste mesmo longe, Seishin. Não só estabeleceste contacto com uma Medium, ainda tiveste a lata de roubar essa Pedra de Ibniad debaixo dos nossos narizes. O que é que achas que vais conseguir com isso?

Atrás de si, os dois irmãos debatiam-se para se libertar dos semideuses, mas em vão. Makoto tentou chutar Mera, mas ela apercebeu-se dos seus movimentos e deu-lhe um soco atrás da cabeça com uma força e destreza surpreendentes para uma jovem de aspecto tão delicado. Ele caiu no chão, atordoado.

-Makoto! - Kuroi gritou ao ver o rapaz tombar no chão quase inconsciente. - Deixem-nos em paz, é de mim que vocês estão atrás!!

-És mesmo assim tão parvo? - Perguntou o jovem à sua frente com o mesmo sorriso arrogante. - Entrega-nos a Pedra e talvez consideremos deixá-los vivos depois de a miúda bonitinha abrir um portal para nós. Quanto a ti... Vai depender de como te portares.

-Genji, pára de conversar e tira-lhe a Pedra! Se não nos despacharmos ainda aparece alguém! - Reclamou Mera, juntando-se a ele em frente a Kuroi.

-Primeiro as senhoras. - Respondeu, encolhendo os ombros com um à-vontade perturbador.

Mera assentiu e estendeu ambas as mãos à sua frente por um instante antes de um círculo de chamas aparecer em volta dos seus pés e devorar rapidamente o chão na direcção de Kuroi. Este mal se conseguiu desviar das labaredas saltando para o lado.

A rapariga encurtou a distância entre ambos e lançou rapidamente uma bola de fogo que Kuroi conseguiu mais uma vez evadir. Assim que estava prestes a retomar o equilíbrio, Genji esgueirou-se por trás dele e desferiu um poderoso pontapé contra o seu peito.


Sochin observava, impotente, o rapaz cair sobre as costas. Estava chocada, tendo visto claramente o oponente de Kuroi desvanecer de um sítio e surgir de imediato noutro como se se tivesse teletransportado.

Enquanto Genji assumia uma posição rígida junto a Kuroi, ainda caído, o chão em redor de ambos começou a tremer levemente. De repente, uma coluna de rocha emergiu do chão e atingiu o semideus de olhos verdes a partir de baixo, lançando-o alguns metros no ar. No momento em que Mera se preparava para lançar outro ataque de fogo, Kuroi voltou-se agilmente no ar e desapareceu, reaparecendo imediatamente atrás dos seus adversários e surpreendendo-os com mais duas descargas de energia negra. Mera contra-atacou a que vinha na sua direcção com a bola de fogo que preparara, mas Genji foi atingido pela outra. Ao princípio parecia não ter surtido qualquer efeito, mas as suas pernas dobraram-se de repente e ele caiu no chão, despojado da sua força.

-Já chega, vou recuperar essa Pedra agora mesmo! - Exclamou a rapariga de cabelo preto, começando a correr imediatamente antes de desaparecer como os outros dois haviam feito e surgindo atrás de Kuroi com uma bola de fogo na sua mão direita, pronta para um ataque a curta distância.

Kuroi tentou voltar-se e bloquear o ataque, mas tudo o que conseguiu foi colocar o seu braço esquerdo entre si e Mera rápido o suficiente para dissipar as chamas no impacto. O ataque enfraqueceu o suficiente para quase não causar feridas, mas queimou a sua manga esquerda revelando uma marca negra de dois traços na pele do seu antebraço que havia mantido tão cuidadosamente em segredo até então. Apesar disso, já não importava. Não sabia se ainda estaria na Terra no dia seguinte, não sabia sequer se ainda estaria vivo até lá. A única coisa que atravessava a sua mente era o instinto de proteger a Pedra e libertar os dois irmãos dos seus inimigos.

Aproveitando o momento imediatamente após o impacto, teletransportou-se para junto da fonte e destruiu a sua válvula com um único soco. A água começou a jorrar em todas as direcções, deixando tanto ele como Mera completamente encharcados e enfraquecendo a ofensiva inflamada da rapariga.

Sochin, no entanto, susteve a respiração por um segundo ao ver a Pedra de Ibniad saltar do bolso de Kuroi, impelida pelo impacto do soco. Ao mesmo tempo Genji recuperava parte da sua força e voltou a colocar-se de pé, correndo então na direcção da jóia mágica. Esquecendo-se totalmente da sua posição, a jovem gritou.

-Cuidado, a Pedra!!

O jovem de cabelo ruivo cobriu rapidamente a sua boca com uma mão e segurou-a com ainda mais força com a outra, fazendo-a sentir-se extremamente desconfortável. Ela tentou debater-se mas ele murmurou algo que parecia um encantamento e todo o seu corpo começou a ficar fraco e cansado, quase como se pudesse adormecer ali mesmo.

Kuroi passou por Mera a correr com a esperança de recuperar a Pedra, mas era tarde demais. Triunfante, Genji segurou-a com firmeza na sua mão. Batendo o pé com firmeza no chão, fez várias colunas de rocha surgir em redor de Kuroi, e atirou a Pedra para as mãos do jovem com a gabardine.

-Toda tua, Wyatt! Usa a miúda para criar o portal antes que ela acorde!

-Entendido!

Apanhando a Pedra de Ibniad com uma mão, segurou em Sochin, inconsciente, com o seu braço livre e começou um encantamento diferente, desta vez em voz alta. Aproximando a jóia do peito dela, continuou a repetir o encantamento enquanto o brilho da mesma começava a aumentar. De súbito uma aura branca engoliu a rapariga e o ar junto a eles começou a parecer distorcido. Rasgando o espaço, uma brecha grande o suficiente para lá caberem três adultos apareceu do ar. O seu interior era feito de luz difusa que girava numa espiral a ritmo descompassado.

Mas Kuroi não tirou os olhos da jovem adormecida. O seu corpo ainda brilhava em conjunto com a Pedra apesar de o portal estar feito, e a expressão de Wyatt mostrava bem o quão surpreendido este estava. Ao largar a Pedra, um som de estilhaços fez-se ouvir e o rosto da rapariga contorceu-se em sofrimento. Makoto, ainda no chão e voltado para cima, tentou abrir lentamente os olhos mas a luz forçou-o a pestanejar várias vezes antes de ser capaz de ver o que se passava.


-A pedra! Está... está a...

-O-o que é isto, Genji? - Perguntou Mera, visivelmente alarmada.

-É provável que ela ainda estivesse levemente consciente e tenha tentado resistir! - Respondeu ele, correndo na direcção da luz. Wyatt, afasta a Pedra dela!

O rapaz ruivo procurou pela jóia com as mãos, mas ao finalmente agarrá-la apercebeu-se de que só tinha metade na sua mão. Quando a luz se dissipou, a outra metade tornou-se visível embutida no peito da rapariga através das roupas rasgadas, como se sempre tivesse feito parte do seu corpo. Makoto tentou erguer-se, mas o choque fê-lo gelar no lugar como uma estátua.

Genji agarrou no braço de Mera e puxou-a consigo para junto do portal. Olhando para Wyatt, cortou firmemente através do ar com uma mão.

-Não interessa, levar metade da Pedra é tudo o que basta para fechar a brecha assim que entrarmos nela! Vamos, antes que a prisão do Seishin enfraqueça!

Os outros dois semideuses assentiram e entraram de imediato na distorção, que rodou ainda mais rapidamente com a passagem de cada um deles. Genji entrou por último, e o portal fechou-se no momento exacto em que este desapareceu através dele.

Sentindo a protecção mágica da rocha em seu redor finalmente enfraquecer, Kuroi quebrou as colunas com os nós dos dedos já em sangue por ter destruído a fonte. Makoto arrastou-se para junto da irmã, sofrendo com ansiedade. Colocou gentilmente uma mão no pescoço dela para saber se o coração ainda batia, e suspirou de alívio perturbado. ao senti-la mover subitamente, saltou para trás com a surpresa.

-WAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!

A rapariga berrava com os seus olhos esbugalhados e fitou o céu da mesma cor com uma expressão de terror no rosto. Kuroi cobriu os ouvidos por instinto ao ouvir o grito agudo, mas logo recuperou a calma e correu na direcção dela, alarmado.

-Sochin-san, por favor, acalma-te! - Disse-lhe, ajoelhando-se junto dos dois irmãos e agarrando na sua mão enquanto esta puxava a camisola rasgada para lhe cobrir o peito. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, rapidamente dissolvidas na água que ainda jorrava da fonte partida, e tremia descontroladamente. O brilho leve que ainda emanava da meia Ibniad no seu peito era visível pelos buracos do tecido e tremia com o seu corpo, perdendo gradualmente a intensidade até desaparecer por completo.

-Sochin... Sentes-te bem? Precisas de alguma coisa? - Perguntou Makoto de imediato, segurando-a nos seus braços.

Acalmando-se lentamente, voltou-se para o irmão e abraçou-o firmemente.

-Nii-chan... Tenho medo... O que é que me vai acontecer?!