Capítulo VI

-Há pessoas por todo o lado, praticamente nenhum sítio por onde sair daqui. - Disse uma voz cansada pertencente a um rapaz.

-Como eu pensava, atraímos demasiada atenção. Raios partam aqueles tipos, afinal eram eles que tinham o controlo da situação desde o início...

Do canto do apertado e confortável quarto, Sochin fitava os dois rapazes com uma expressão desprovida de vivacidade. Sentada no chão junto a um urso de peluche gigante, apertou a perna direita com força contra o peito e baixou o olhar, suspirando tão baixo que nenhum deles a conseguia ouvir.

No chão de soalho, junto a ela, estava uma camisola de alças rasgada de um tom roxo rosado. A parte do decote tinha sido quase completamente retalhada pela explosão de energia pura anteriormente. Pensou que era um milagre o seu corpo não ter sofrido qualquer ferimento. No entanto, o incidente deixara outro tipo de marca.

A sua mão deslizou do seu joelho e pela saliência da sua clavícula até os seus dedos tocarem de leve no meio do seu peito por baixo da roupa. No local onde antes estava uma área de pele suave e morna encontrava-se agora um objecto igualmente morno mas perturbadoramente sólido e geométrico. O seu volume não sobressaía de todo, tanto que até uma camisola fina podia mantê-lo escondido, mas a pedra rigidamente lapidada transmitia uma sensação horrivelmente errada. O local onde a Pedra se unia com a pele estava coberto pelo que parecia ser uma discreta orla dourada formando uma moldura em redor da brilhante pedra em forma de losango.

A sua garganta pareceu-lhe muito seca e apertada ao tentar engolir o sabor amargo que tinha na boca e baixou ainda mais a cabeça. Tentar conter a sua ansiedade parecia apenas fazer a Pedra brilhar mais intensamente através da sua roupa.



Sentia-se despida, totalmente incapaz de controlar quanto das suas emoções os outros podiam ver.



Kuroi parecia preocupado ao falar com o seu irmão. Tentava manter-se a par da conversa para se distrair do novo e desconhecido elemento no seu corpo.

-Então, o que fazemos agora? Ou melhor, o que é que queres fazer agora? - Makoto voltou-se para o mais velho falando num tom acusatório e sem expressão no seu rosto.

-Isso vai depender do que... - O rapaz de cabelo castanho voltou-se para Sochin de um só movimento - ELA quiser fazer agora.

A rapariga olhou para ele, confusa.

-...Eu só quero afastar-me disto tudo...

-Eu seu que não é fácil. Se eu soubesse que isto ia acontecer quando eles usaram a Pedra...

-DEVIAS ter sabido!! - Gritou Makoto de repente, enchendo o quarto de silêncio nos segundos que se seguiram. Só então sentiu no seu peito uma dolorosa sensação de constrangimento, como se fosse explodir, e apercebeu-se de que tinha falado demasiado alto e abruptamente.




-...É verdade que sabia que era possível, mas a probabilidade era extremamente baixa. No entanto, tenho de pedir desculpa. Pensei que pudesse impedi-los de usar a Pedra de todo.




-Pedir desculpa agora não muda grande coisa...

-Pois não. Por isso é que preciso da decisão da Sochin-san o mais depressa possível.

-Que... decisão? - A rapariga perguntou lentamente.

-A Pedra não é perigosa, mas escondê-la para o resto da vida vai provavelmente ser um pesadelo. Aulas de Educação Física, exames médicos... eventualmente também vais querer ter "alguém", certo?

-O-o que é que estás a dizer numa altura destas?! - A rapariga guinchou nervosamente e as maçãs do seu rosto começaram a ficar vermelhas. - Isso não é da tua conta!!


Kuroi forçou um sorriso ensombrado.


-Realmente, não me diz respeito. Mas eu sei que vocês os dois depositaram a vossa confiança em mim de uma forma ou de outra, e eu mesmo assim deixei isto acontecer. Mas... em Dreffel de certeza que há uma forma de remover essa Meia Ibniad do teu corpo sem deixar marcas.

-Eu sabia onde esta conversa ia dar! Tinhas tudo pleaneado desde o início, não tinhas? - Exclamou Makoto - Arrastar-nos para Dreffel contigo! Desde o momento em que me perguntaste até onde estava disposto a ir...

-Não tinha. Para ser sincero, se vos 'arrastar' comigo só me vão atrasar, e não tenho nada a ganhar com isso. Quando te perguntei isso estava a pensar na possibilidade de um de vocês ser tomado como refém, mas eles nem sequer precisaram disso.



-Ainda assim, estás à espera que voltemos a confiar em ti...?! Como é que sabemos se nos estás sequer a dizer a verdade?



-Nii-chan... - Murmurou Sochin.



-Deixar-vos vir comigo é tudo o que posso fazer para atenuar pelo meu fracasso. Só depende da Sochin-san aceitar ou não. Estar comigo pode ter os seus riscos, e vai demorar algum tempo, mas no fim de contas ela vai ver-se livre daquela Pedra e eu desapareço de vez das vossas vidas.

-E se falhares novamente, como hoje? E se acabarmos mortos enquanto estamos lá? - Insistiu Makoto. Apesar de soar rude ou desconfiado, os pingos de suor no seu rosto e a hesitação nos seus olhos denunciavam que não sentia realmente o que estava a dizer.

-Não vou negar, existe a possibilidade de eu falhar. Tal como tu ou qualquer outra pessoa em determinadas situações.

-Mas se tivesses mesmo dado o teu máximo, tudo isto...

-Tudo isto o quê? Não sou nenhum grande estratega. A minha inteligência mal está acima da média humana. Posso tomar decisões erradas e avaliar mal situações às vezes. Mas quem está errado aqui és tu se esperaste de mim algo que nunca prometi. - Interrompeu-o Kuroi.


Desta vez, o seu olhar estava diferente. Era muito mais sério.


-O conceito ridículo que os humanos têm de uma Divindade... Como é que a culpa é minha por não estar à altura dele? Acreditas mesmo que há um ser perfeito algures cuja bondade supera a compreensão humana? Achas mesmo que algo como a perfeição existe sequer no Universo?!




O rapaz fitou-o e novamente à irmã, sem palavras.




-Lamento desapontar, mas eu sou assim. Um ser defeituoso e semelhante aos humanos com capacidades estranhas. Sou o tipo de imperfeição em quem vão ter de confiar se a tua irmã decidir viver uma vida normal como se isto nunca tivesse acontecido. E podes crer que vou dar o meu melhor para isso.



Os dois voltaram-se para Sochin, aguardando uma resposta. À medida que os momentos passavam, a luz que emanava da Pedra ia-se tornando mais intensa até que se tornou vagamente visível através da sua camisola.

-Se é assim, estou a contar contigo, Kuroi-kun. - Respondeu.








--Hey, Sochin... Tens mesmo a certeza disto? Ainda temos tempo de tirar o bilhete que deixámos à Mãe e ao Pai e fingir que não aconteceu nada... - Disse Makoto, com os olhos presos no chão. - Sabes, eles vão chegar a casa muito em breve assim que souberem que houve incidentes no parque, já que é perto daqui...

Não estava a agir como era habitual, e Kuroi sabia bem disso. A luta há pouco tempo atrás tinha-o deixado nervoso.

-Também tenho medo... - Respondeu a rapariga, cobrindo instintivamente o peito ao proferir estas palavras. - Mas apesar de ainda só ter passado perto de uma hora eu sei que não quero viver com esta coisa no meu corpo para sempre. Mesmo que seja perigoso... Nii-chan, não tens de vir.



As suas palavras foram como um estalo na cara para o rapaz.



-...Não, eu vou! Não sou nenhum cobarde, não me vão deixar para trás assim! - Respondeu o loiro, com um olhar de determinação. Com estas palavras, todo o seu nervosismo pareceu desaparecer.

Kuroi assentiu com um leve sorriso de alívio.

-Então está resolvido.

Sochin assentiu de volta e voltou as costas aos dois rapazes, tentando concentrar-se. Os dois irmãos pegaram nas suas mochilas do chão e o quarto da rapariga encheu-se de silêncio durante alguns segundos enquanto esta tentava recordar-se do que acontecera quando Wyatt, o semideus ruivo que servia de apoio a Mera e Genji, forçou uma reacção entre ela e a Pedra de Ibniad.




"Uma emoção forte o suficiente deve servir.", pensou. "Nesse caso..."




Concentrou-se ainda mais nesse momento, até o terror que havia sentido há cerca de huma hora atrás, antes de ficar inconsciente, lhe parecer tão real como se estivesse a acontecer de novo.Tentando conter um gemido, estendeu as mãos em frente e o ar entre elas começou a distorcer-se. A Pedra no seu peito começou a brilhar com tanta intensidade como antes, iluminando todo o quarto.

Apesar de ser a segunda vez que presenciava o acontecimento, Makoto assistia com o mesmo assombro à luz que os rodeava concentrar-se toda num único ponto e depois expandir-se numa espiral de partículas luminosa e suficientemente grande para lá entrarem.

-DREFFEL, PREPARA-TE PORQUE ESTAMOS A CAMINHO!! - Gritou, sacudindo assim a restante tensão do seu corpo e mente. Respirou fundo, como se fosse mergulhar, e saltou sem hesitação para o interior.


Kuroi e Sochin trocaram olhares, nenhum deles muito certo de como reagir. Kuroi encolheu os ombros e apressou-se para dentro da falha atrás do mais novo.


Sochin deu um passo em frente, mas então deteve-se. Deitou um olhar ao seu quarto, um local simples e arrumado com uma prateleira para manuais escolares e muitos animais de peluche que pareciam olhar para ela de volta. Era o lugar onde se sentia realmente confortável...




O som de chaves a abrir a porta da frente chegou aos seus ouvidos enquanto estava distraída pelos seus próprios pensamentos, e ouviu as vozes dos seus pais. Provavelmente tinham vindo para se certificarem de que ela e Makoto não tinham sido apanhados no incidente.



Os seus olhos encheram-se rapidamente de lágrimas. Cobriu firmemente a boca, contendo outro gemido, e correu para o interior do portal, ouvindo um zumbido enquanto este se fechava sobre si.

Ao contrário do que esperava, não havia nenhuma terra ou céu. Nem sequer um chão para pisar. Os três estavam sobre algum tipo de plataforma invisível que não fazia nenhum som sob os seus pés, e em redor tudo estava cheio de partículas brilhantes contra um espaço escuro. Makoto tentou apanhar uma dessas partículas, mas ela desfez-se assim que lhe tocou.



-Isto é... Dreffel? - Perguntou ela, enxugando as lágrimas dos olhos e tantando habituar-se à luz.


Kuroi Sorriu.


-Isto é só uma passagem. Acho que podes chamar-lhe o próprio Tecido Dimensional. - Disse o rapaz, olhando também ele em volta de forma discreta. - Já faz muito tempo que estive aqui.

-Então, se continuarmos a andar em frente vamos chegar ao outro lado? - Arriscou Makoto, seguindo outra partícula luminosa com o olhar e enfiando as mãos nos bolsos enquanto seguia o mais velho.


O rapaz de cabelo castanho assentiu.

-Mas espera lá... se Dreffel é um Mundo inteiro como a Terra, isso não significa que podemos ir parar a qualquer sítio?!

-Esse seria de facto o caso se cada Mundo não tivesse lugares especiais onde a energia está concentrada e que atraem falhas. No caso de Dreffel, são os treze templos espalhados pelo país de Suderion, a Terra Santa. - Informou Kuroi. - Apesar de ainda haver alguma incerteza, vamos sem dúvida sair nas mediações de um desses templos... O que é uma feliz coincidência tendo em conta que são exactamente onde eu tenho de ir.

-Isso é tudo muito prático, mas... então e a parte em que é suposto ajudares-me a livrar DESTA coisa?! - Perguntou Sochin, colocando uma mão contra o peito.



O semideus deu uma leve risada, parou por um momento e virou-se para os dois irmãos.



Não te preocupes. Não vos vou trair, nunca. Sabes, visto que vamos viajar existe uma grande probabilidade de nos cruzarmos com alguém capaz de te ajudar. - Disse, afagando levemente a cabeça da rapariga.

Ela fez beicinho.

-Espero bem que sim!

-Como disse, muito provável. Também podemos procurar nas horas vagas para tornar tudo mais rápido. E já agora, é bom ver que estás outra vez a agir como tu mesma.

-...O que é que isso quer dizer?!

-Egocêntrica, desconfiada e como uma pitinha. Um verdadeiro alívio. - Respondeu Kuroi com um sorriso de provocação.

-Seu grande...!!

-Hey, olhem! Aquilo não é o outro lado?  -Interrompeu Makoto, apontando em frente.



Mais uma vez, avistaram uma concentração de partículas em espiral. No entanto, desta vez o outro lado era vagamente visível através do centro. Nos seus olhos aparecia como uma visão pouco nítida em tons de branco, vermelho e dourado.

O rapaz suspirou levemente de alívio ao constatar que os dois tinham parado de se provocar e estavam agora concentrados em chegar ao outro extremo da passagem.

Kuroi sentiu um ligeiro arrepio percorrer o seu corpo à medida que se aproximavam.




"Finalmente... Estou de novo em casa!!"



Makoto e Sochin apressaram o passo, agora mais curiosos do que assustados. À medida que se aproximavam, o espaço que podiam ver através da falha pareceu alargar-se um pouco.

-Tenham cuidado agora, não sabemos exactamente onde vamos parar. É melhor ficarmos juntos ao sair. - Aconselhou Kuroi, alcançando-os.






Ao atravessar o fim da passagem, foram engolidos por outra concentração quase sólida de luz que os cegou por alguns segundos. Ouviram o zumbido que indicava que a falha se estava a fechar, e cada um pestanejou várias vezes antes de se aperceberem do espaço que os rodeava.





De repente, sentiram ainda mais calor do que em casa. Era claramente de dia, mas o espaço em que se encontravam estava escuro pois as entradas de luz no tecto estavam cobertas por panejamentos carmesim com bordados em fio de ouro. Estavam na base de cinco longos degraus curvos que levavam a uma plataforma no centro da qual estava uma construção semelhante a um altar, e no topo deste estava um pequeno cofre de madeira coberto por uma redoma. Na direcção contrária estava um corredor tapeteado com o mesmo tecido carmesim e ladeado por colunas de pedra cor de marfim lisas e de base redonda unidas por uma arcada. Nos arcos estavam penduradas longas cortinas igualmente carmesim com os mesmos bordados que transmitiam uma grande elegância. Apesar de tudo ter um ar acolhedor, a atmosfera era tensa.





Foi Sochin quem quebrou o silêncio de entre os três.

-Este sítio é...?

-Não se mexam, intrusos!! - Interrompeu-a uma voz masculina, firme e que não lhes era familiar. - Este é um local sagrado. Revelem as vossas intenções ou saiam daqui imediatamente!

Detrás de uma das colunas, um homem novo apressou-se para o centro do corredor com uma besta carregada nas mãos. Ao início parecia um humano normal, mas as marcas esverdeadas nas maçãs do rosto, nariz, pulsos e tornozelos davam-lhe uma aparência pouco comum. O seu cabelo era laranja ardente cortado curto e os seus olhos cinzentos claros. Usava um robe branco com decorações carmesim e um fio ao pescoço com um medalhão dourado. A sua expressão era pouco amigável, mas as suas mãos tremiam ao segurar a besta. Era inexperiente com ela.

-Vou repetir, revelem as vossas intenções! - Reforçou. - O que é que miúdos como vocês acham que estão a fazer, a aparecer de repente junto à Relíquia sagrada da nossa cidade? Planeavam roubá-la?

-P-por favor acalme-se... - Pediu Makoto, erguendo as mãos no ar.

Os outros dois ergueram também as mãos, na esperança de resolver calmamente a situação.

-Na verdade... - Continuou o loiro. - Não queríamos vir para aqui especificamente! Nós viemos ainda agora da Terra e...

-O rosto do homem contorceu-se subitamente numa expressão ainda mais ameaçadora.

-Gaians no Templo?! IMPERDOÁVEL!! GUARDAS, APANHEM-NOS!!

-O quê?! Nós não fizemos nada de mal!! - Reclamou Makoto, olhando em redor. Várias figuras de armadura e com roupas do mesmo motivo branco e carmesim surgiram detrás das cortinas e rodearam-nos com machados de haste em mão. Tentou correr através da sua formação, mas Kuroi segurou-o firmemente pelo braço.

-Não tentes fugir, só vai piorar as coisas. - Disse. - Não fizemos nada, podemos resolver isto de forma pacífica.

Os guardas rapidamente formaram um círculo em redor do grupo com os seus machados de haste apontados para eles. Um dos guardas, com uma armadura um pouco mais decorada, virou-se para o homem de cabelo laranja.

-O que fazemos com eles? Não chegaram a fazer nada, mas...

-Prende-os por agora. - Disse o homem, baixando lentamente a besta da posição de disparo. - Vamos decidir o que fazer com eles quando a Matriarca chegar. Tolos, interferir com o Templo numa altura destas...

O líder dos guardas assentiu e os outros começaram a espicaçar o grupo com os seus machados de haste para os fazer mover.

-Hey, não é preciso serem brutos! Basta dizerem o caminho e nós vamos sem reclamar, está bem? - Exclamou Makoto. - Isso é uma maneira bastante rude de tratar inocentes...

-Eles não podem falar connosco, Makoto. Guardas de Templo, incluindo o seu Capitão, são postos sob um selo que os impede de falar com os seus prisioneiros. - Disse Kuroi, começando a caminhar. - Serve para os impedir de começarem uma conversa e se distraírem.

-Eh, isso é bastante rígido...



À medida que caminhavam pela ala traseira do edifício, pareciam escassear cada vez mais as janelas de onde pudesse entrar qualquer luz. No mínimo, pensaram, a temperatura estava mais agradável naquela zona, mas quando começaram a descer uma escadaria num túnel estreito foram surpreendidos por um cheiro fortíssimo e desagradável vindo de baixo.

-Hey, Kuroi-kun... - Sussurrou-lhe Sochin. - Não podes simplesmente dizer-lhes que és...

-Nem pensar. Tenho de manter isso em segredo para evitar atraír demasiada atenção, caso contrário podemos encontrar perigo mais depressa do que o necessário. - Murmurou ele de volta.

-Como é que este cheiro só por si não conta como um perigo?!

Ao ouvi-la levantar a voz, um dos guardas ameaçou-a com o seu machado de haste. Tiveram de permanecer em silêncio no resto do caminho.

Kuroi, Makoto e Sochin foram lentamente conduzidos às escuras para uma espécie de cela pelos Guardas armados, sob a supervisão do seu Capitão. A única fonte de luz era uma tocha que ele segurava. Enquanto a porta metálica estava a ser trancada, Makoto foi-se apercebendo cada vez mais claramente de que o cheiro era carne podre e um arrepio percorreu-lhe a espinha.

-Hey, pelo menos digam-nos quando é que vamos poder sair! - Gritou para a porta. - Este sítio cheira a falta de senhora das limpezas!

-Ouviram o Irmão Samal... Quando a Matriarca regressar. - Respondeu a voz do Capitão do outro lado. Então, através do respirador da porta, observaram a luz da tocha a desvanecer juntamente com o som de muitos passos escada acima.



-...Ele falou.








-Isto não é exactamente aquilo que eu esperava como boas-vindas... - Resmungou Sochin. - Também não me pareceram muito complacentes, o que é que vamos fazer se eles nos quiserem deixar aqui fechados por, sei lá, um mês?

-Também não estava à espera... Com a nossa sorte, fomos parar mesmo ao pé do Altar de um Templo. Vamos ter de seguir as ordens deles até acreditarem na nossa inocência... Deve correr tudo bem desde que não aconteça nada de suspeito até a Matriarca chegar. Não deve demorar assim tanto...

-Espero bem que não, porque estou a ficar com fome... - Queixou-se o loiro.

-Como é que consegues ter fome com este cheiro? É insuportável! - Respondeu a irmã.

-Oh, por favor, importam-se de calar a boca?!  Já disse que vai correr tudo bem desde que não façamos nada susp...



Antes que Kuroi pudesse acabar a frase, foi interrompido pelo som de um impacto enorme vindo do outro lado da parede de pedra exterior. Cada vez mais rodeados de poeira, sentiram uma lufada de vento morno pelos seus corpos e os seus olhos começaram a doer devido à entrada repentina de luz. A parede traseira da cela desfez-se como se fosse feita de cubos de açúcar.



Uma voz ruidosa e um pouco rouca rindo de forma maníaca ecoou pelos seus ouvidos quando a poeira finalmente começou a assentar e Kuroi teve um pressentimento terrível sobre a situação que tinha acabado de ser criada.

-Então são estes os gaians que tentaram roubar a Relíquia ainda há pouco? Não parecem grande coisa, mas tenho de admitir que foi uma tentativa bastante arrojada. Estou impressionado, ouviram? Muito impressionado!

-Eh, quem é este tipo... - Balbuciou Makoto por entre tossidelas ligeiras.

-Queres saber quem eu sou? Nunca ouviste falar de mim, gaian? Muito bem, irei elucidar-te!! - Respondeu a voz, aparentemente ignorando o facto de que se tratava de uma pergunta rectórica. Finalmente o pó assentou e puderam ver quem rebentara com a parede.


Ele não parecia muito adulto, mais ou menos da mesma idade que Kuroi. A sua pele fortemente queimada pelo sol, atravessada por várias marcas na forma de faixas vermelho-sangue, destacava os enormes olhos vermelhos que atraíam facilmente a atenção . O seu cabelo ondulado era de um cinzento muito escuro, quase preto, e a maior parte estava coberto por um lenço largo cor de marfim. A sua franja, longa e desalinhada, dava-lhe um aspecto selvagem e juvenil. Usava um longo colete vermelho com fecho de couro e fivelas sobre uma túnica branca de mangas largas, um lenço curto verde-pálido que lhe cobria o pescoço e parte do queixo, bandas de pulso da mesma cor do seu colete, calças azuis pelo tornozelo feitas de um tecido leve e sandálias de couro castanho claro. Estava de pé sobre a pilha de detritos criada pela explosão com os braços cruzados e uma expressão de triunfo estampada no rosto.

-O meu nome, ouçam bem, é Hamed Al-Faahyir! Rei de todos os ladrões da vasta região de Sayden e da sua área de influência! Apesar de os vossos métodos serem defeituosos e ineficazes, devo admitir que teletransportar directamente para dentro do Templo tem estilo. Assim, concedo-vos o direito de se juntarem a mim como meus subordinados!! - Gritou, olhando para eles como um pai orgulhoso.



"Eh, encontrámos alguém mais barulhento que o Nii-chan..."


"Qual é a da atitude deste gajo? Foi o ego dele que esmagou a parede?!"


Só Kuroi parecia demasiado confuso para enfrentar o seu libertador não solicitado. Uma tentativa de fuga significava terem Guardas no seu encalço vindos de toda a cidade, mas ao mesmo tempo significava que não podiam permanecer naquele local por muito mais tempo. Para piorar a situação, a cara e o nome daquele rapaz eram-lhe estranhamente familiares. Incapaz de espreitar para além do que restava da parede, olhou para ele e acenou discretamente para chamar a sua atenção.

-Quantos homens tens contigo? Consegues escoltar-nos para um sítio seguro? - Perguntou.

-Estás mesmo a pensar ir na conversa deste tipo? - Murmurou-lhe Sochin. - Tem ar de ser a última pessoa que queremos ter por perto se vamos ficar longe de sarilhos!

Ingnorando o comentário dela, Kuroi continuou à espera de uma resposta.

-Então estás a pensar rasparmo-nos daqui à grande, hã? Boa, gosto disso! - Respondeu o rapaz de olhos vermelhos, afastando a franja do rosto com um gesto rápido e falando com as mãos sobre o cinto. - Eu cá vim por minha conta e só trago comigo uma adaga, mas posso garantir que sou a escolta mais segura que alguma vez terão!

-Muito bem então, por favor leva-nos para fora daqui! Depois disso falamos! - Respondeu Kuroi.

-Senpai, perdeste a cabeça? Este tal Hamed pode ter acabado de nos salvar, mas disse que é um ladrão! Como se tudo o resto acerca dele não parecesse estranho o suficiente, ir com ele vai tornar-nos ainda mais suspeitos! - Sussurrou Makoto para o amigo enquanto trepavam pela parede destruída para o exterior.

Depois de ambos saírem, Hamed ofereceu-se para ajudar Sochin a subir de uma forma exageradamente cavalheiresca.

-Não te preocupes.  -Respondeu Kuroi com um sorriso. - Tenho um pressentimento bastante bom acerta disto.

-Eh, assim do nada...

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