Capítulo V


O som de uma porta a abrir-se interrompeu Sochin e Mera enquanto falavam uma com a outra sentadas no sofá. Coçando nervosamente a parte de trás da cabeça através do cabelo loiro embaraçado, Makoto vagueou até à sala de estar.

-Eh? Kohaku-san? ...Que surpresa!

Mera fitou-o e sorriu acolhedoramente.

-Olá! - Cumprimentou. - Desculpa se a nossa conversa te acordou. O Kuro-chan está aí, não está?

Makoto assentiu.

-Ele está... emm... ainda está a dormir, disse-me que se calhar ia dormir a manhã toda.

-...O que mais seria de esperar desse tipo. - Sochin resmungou num tom não muito sério.

Makoto forçou um sorriso e encostou-se descontraidamente à parede.

-Não vos apetece ir dar uma volta algures? Hoje parece um bom dia para passear. - Disse o rapaz. - Além disso, não quero acordar o Kuroi ao jogar videojogos no quarto.

As duas raparigas entreolharam-se e assentiram.






-Que parque tão bonito! Não acredito que ainda não tinha estado aqui desde que me mudei... - Exclamou Mera, respirando fundo.

O parque da cidade em redor do grupo estava repleto de flores desabrochadas. No centro havia uma grande fonte de pedra que lançava no ar frescas gotas de água cristalina. Do planalto onde a cidade estava conseguiam ver o mar calmamente banhando a terra com as suas ondas. O céu estava de um azul limpo, sem qualquer nuvem à vista, e toda a paisagem ava a sensação de poder pertencer a alguma propaganda turística.

-Por falar nisso... Kohaku-san, porque é que te mudaste para aqui? - Perguntou o loiro, ajustando casualmente um par de óculos de leitura rectangulares sobre a cabeça. Não tinha o hábito de os usar, mas não podia sair sem os trazer consigo.

A expressão de Mera tornou-se repentinamente séria, tal como acontecia por vezes com Kuroi. Olhou-o nos olhos, depois para Sochin e finalmente dirigiu o seu olhar para a frente.

-Presumo que seja a altura certa para saberem... O Kuroi provavelmente já vos falou de Dreffel... o nosso mundo.

Sochin olhou-a com surpresa. Makoto esperou que ela continuasse a falar.

-Sim, tanto eu como ele nascemos lá. - Continuou a jovem, olhando em redor para se certificar de que ninguém os ouvia. - Isto pode parecer ridículo, mas nós somos semideuses e fomos banidos de Dreffel apenas por termos nascido. Existem mais como nós, também.



S-Semideuses?!

O coração de Makoto pareceu parar por um segundo.

É isso que o Kuroi-senpai é?



-N-não pode ser! Mesmo que o que estás a dizer seja verdade, o que é que nós temos a ver com tudo isso? - Perguntou Sochin, ao mesmo tempo fascinada e aterrorizada.
Ao contrário de Kuroi, Mera não havia ainda revelado qualquer tipo de habilidade especial. No entanto, a sua presença era agora tão forte que a mais nova podia jurar ser capaz de a sentir do outro extremo do parque.


Mera abrandou o passo enquanto procurava as palavras certas para responder.


-Há onze anos atrás, as Ninfas de Dreffel que nos deram à luz a nós, semideuses, pereceram sem ninguém saber o porquê. A mãe do Kuroi, a minha própria mãe... Depois de lhes ter sido retirado o seu poder como pena por se apaixonarem por seres humanos, creio que a sua força vital desapareceu aos poucos como consequência. Tudo o que resta delas agora são aquilo que é conhecido como as Treze Relíquias, suportes físicos que contêm a essência do seu poder. Mas...



-Mas? - Perguntou Makoto.



-Apesar de ser suposto nós reclamarmos essas relíquias de modo a completar o nosso poder e continuar a missão das nossas mães como guardiães de Dreffel, o Kuroi tem outros planos para esses suportes. Ele pretende destruir tantos quantos puder para os seus próprios objectivos egoístas e impedir-nos a todos de completar a missão para a qual nascemos. É por isso que não posso permitir que ele regresse a Dreffel antes de todos nós termos reclamado as Relíquias... e isso significa mantê-lo afastado de qualquer Medium com que ele se possa cruzar.

Sochin continuava a ouvir as suas palavras, mas não estava segura de como reagir. Não confiava em Kuroi, mas não pensava nele como uma má pessoa.

-Tal como eu e os meus companheiros, os poderes dele são enfraquecidos na Terra e não lhe é possível abrir um portal sozinho. Ele precisa de um Medium humano e uma Pedra de Ibniad, um catalizador mágico de grande poder que só pode ser encontrado no nosso mundo, para abrir uma falha no Tecido Dimensional até Dreffel. O plano dele é provavelmente roubar a Pedra que eu possuo assim que consiga convencer um de vocês a ajudá-lo... O que é, aliás, a razão porque vim ter com vocês.

-Para te certificares de que não o ajudamos? - Atreveu-se Sochin finalmente a perguntar.

-E para vos oferecer um acordo. Se me disserem qual de vocês é o Medium e concordarem em abrir um portal para mim e para os meus companheiros, nós prometemos manter o Kuroi afastado de vocês e nunca irão voltar a ouvir falar deste assunto. Podem continuar com as vossas vidas como qualquer outra pessoa.



E se recusarmos?

A questão surgiu na cabeça de Makoto, mas o rapaz permaneceu em silêncio. Tinha um pressentimento de que não iria gostar da resposta.



Enquanto continuavam a andar, Sochin parecia ponderar sobre o acordo. Em quem deveria confiar? Poderia sequer confiar em algum dos semideuses? Eram realmente semideuses, como Mera dissera, ou era tudo um bluff para os assustar? E quem eram estes “companheiros” de quem a jovem falava?

A rapariga de olhos cor de âmbar pareceu aperceber-se da hesitação na sua expressão e retirou algo da sua mala.

-Aqui. - Disse, mostrando aos dois discretamente uma gema de forma estranha cuja cor parecia mudar dependendo do ângulo de visão. Tinha um brilho suave que, sem dúvida, não pertencia à Terra e parecia irradiar uma forma misteriosa de energia.


-É... é tão bela... - Desabafou a mais nova.


-Esta é a forma mais pura de uma Pedra de Ibniad. Se lhe tocares, serás capaz de saber que o que vos contei é verdade.

Makoto colocou a mão sobre o ombro da irmã, como que a avisá-la para ter cuidado.

-Não há nada a temer. - Disse Mera, com uma voz baixa mas cheia de convicção, quase como um desafio murmurado.

Sochin aproximou lentamente a sua mão direita da Pedra e observou com espanto que o seu brilho parecia tornar-se mais poderoso à medida que a distância se encurtava. Makoto mordeu o lábio e olhou nervosamente em sua volta. A expressão de Mera pareceu alterar-se para um sorriso de satisfação por meros instantes.


Sim, mostra-me o que podes fazer, Medium!!


Num piscar de olhos, algo atingiu a mão de Mera e fê-la deixar cair a jóia e recuar dois passos. Parecia uma esfera de energia, mas era totalmente negra e algo nela parecia estranhamente vazio durante o segundo que durou.

Os três viraram as cabeças na direcção de onde viera e a figura de um jovem correu para a Pedra de Ibniad, apanhando-a do chão entre eles e dando então meia-volta e revelando o seu rosto enquanto a enfiava no bolso. Emoldurados por ondas de indomável cabelo castanho avermelhado, os olhos verdes de Kuroi reluziram com ansiedade enquanto fitavam os três com um misto de alívio e desapontamento.

-Desculpa, mas vou ficar com isto.

-Devolve a Pedra, maldito ladrão! - Gritou Mera, perdendo repentinamente a compostura. Os seus olhos de âmbar brilhavam furiosamente sob a luz que recaía neles através das copas das árvores, e os dois irmãos podiam jurar ter sentido calor a emanar do seu corpo enquanto falava.

-Ladrão? Não devo ser muito pior do que quem quer que seja que te vendeu esta Pedra, Mera. Agora se pretenderes continuar a manipular esses dois humanos para confiarem em ti, vais ter de me tirar esta Pedra de Ibniad primeiro.

-Ai sim, quem disse? - Uma voz que não lhes era familiar soou por trás de Makoto e Sochin. Quando se viraram, um rapaz pouco mais velho que Kuroi e Mera apareceu de trás de um arbusto alto. Vestia um blusão de couro leve e o seu cabelo castanho escuro estava puxado para trás e afastado da sua testa com a ajuda de uma faixa de tecido e sorria vitoriosamente. Junto a ele estava outro jovem, aparentemente ainda mais velho, cujo cabelo ruivo estava cuidadosamente apanhado num curto rabo-de-cavalo. Apesar do tempo, usava uma gabardine longa e castanha sobre a t-shirt e as calças de ganga e a sua expressão parecia indiferente. Aproveitando o momento de surpresa de Kuroi, o mais velho segurou Sochin no lugar ao mesmo tempo que Mera recuava para imobilizar Makoto. O rapaz do blusão de ganga colocou-se em frente a eles com as mãos enfiadas nos bolsos e analisou Kuroi com os seus olhos penetrantes de um castanho claro e seco.

-Desta vez foste mesmo longe, Seishin. Não só estabeleceste contacto com uma Medium, ainda tiveste a lata de roubar essa Pedra de Ibniad debaixo dos nossos narizes. O que é que achas que vais conseguir com isso?

Atrás de si, os dois irmãos debatiam-se para se libertar dos semideuses, mas em vão. Makoto tentou chutar Mera, mas ela apercebeu-se dos seus movimentos e deu-lhe um soco atrás da cabeça com uma força e destreza surpreendentes para uma jovem de aspecto tão delicado. Ele caiu no chão, atordoado.

-Makoto! - Kuroi gritou ao ver o rapaz tombar no chão quase inconsciente. - Deixem-nos em paz, é de mim que vocês estão atrás!!

-És mesmo assim tão parvo? - Perguntou o jovem à sua frente com o mesmo sorriso arrogante. - Entrega-nos a Pedra e talvez consideremos deixá-los vivos depois de a miúda bonitinha abrir um portal para nós. Quanto a ti... Vai depender de como te portares.

-Genji, pára de conversar e tira-lhe a Pedra! Se não nos despacharmos ainda aparece alguém! - Reclamou Mera, juntando-se a ele em frente a Kuroi.

-Primeiro as senhoras. - Respondeu, encolhendo os ombros com um à-vontade perturbador.

Mera assentiu e estendeu ambas as mãos à sua frente por um instante antes de um círculo de chamas aparecer em volta dos seus pés e devorar rapidamente o chão na direcção de Kuroi. Este mal se conseguiu desviar das labaredas saltando para o lado.

A rapariga encurtou a distância entre ambos e lançou rapidamente uma bola de fogo que Kuroi conseguiu mais uma vez evadir. Assim que estava prestes a retomar o equilíbrio, Genji esgueirou-se por trás dele e desferiu um poderoso pontapé contra o seu peito.


Sochin observava, impotente, o rapaz cair sobre as costas. Estava chocada, tendo visto claramente o oponente de Kuroi desvanecer de um sítio e surgir de imediato noutro como se se tivesse teletransportado.

Enquanto Genji assumia uma posição rígida junto a Kuroi, ainda caído, o chão em redor de ambos começou a tremer levemente. De repente, uma coluna de rocha emergiu do chão e atingiu o semideus de olhos verdes a partir de baixo, lançando-o alguns metros no ar. No momento em que Mera se preparava para lançar outro ataque de fogo, Kuroi voltou-se agilmente no ar e desapareceu, reaparecendo imediatamente atrás dos seus adversários e surpreendendo-os com mais duas descargas de energia negra. Mera contra-atacou a que vinha na sua direcção com a bola de fogo que preparara, mas Genji foi atingido pela outra. Ao princípio parecia não ter surtido qualquer efeito, mas as suas pernas dobraram-se de repente e ele caiu no chão, despojado da sua força.

-Já chega, vou recuperar essa Pedra agora mesmo! - Exclamou a rapariga de cabelo preto, começando a correr imediatamente antes de desaparecer como os outros dois haviam feito e surgindo atrás de Kuroi com uma bola de fogo na sua mão direita, pronta para um ataque a curta distância.

Kuroi tentou voltar-se e bloquear o ataque, mas tudo o que conseguiu foi colocar o seu braço esquerdo entre si e Mera rápido o suficiente para dissipar as chamas no impacto. O ataque enfraqueceu o suficiente para quase não causar feridas, mas queimou a sua manga esquerda revelando uma marca negra de dois traços na pele do seu antebraço que havia mantido tão cuidadosamente em segredo até então. Apesar disso, já não importava. Não sabia se ainda estaria na Terra no dia seguinte, não sabia sequer se ainda estaria vivo até lá. A única coisa que atravessava a sua mente era o instinto de proteger a Pedra e libertar os dois irmãos dos seus inimigos.

Aproveitando o momento imediatamente após o impacto, teletransportou-se para junto da fonte e destruiu a sua válvula com um único soco. A água começou a jorrar em todas as direcções, deixando tanto ele como Mera completamente encharcados e enfraquecendo a ofensiva inflamada da rapariga.

Sochin, no entanto, susteve a respiração por um segundo ao ver a Pedra de Ibniad saltar do bolso de Kuroi, impelida pelo impacto do soco. Ao mesmo tempo Genji recuperava parte da sua força e voltou a colocar-se de pé, correndo então na direcção da jóia mágica. Esquecendo-se totalmente da sua posição, a jovem gritou.

-Cuidado, a Pedra!!

O jovem de cabelo ruivo cobriu rapidamente a sua boca com uma mão e segurou-a com ainda mais força com a outra, fazendo-a sentir-se extremamente desconfortável. Ela tentou debater-se mas ele murmurou algo que parecia um encantamento e todo o seu corpo começou a ficar fraco e cansado, quase como se pudesse adormecer ali mesmo.

Kuroi passou por Mera a correr com a esperança de recuperar a Pedra, mas era tarde demais. Triunfante, Genji segurou-a com firmeza na sua mão. Batendo o pé com firmeza no chão, fez várias colunas de rocha surgir em redor de Kuroi, e atirou a Pedra para as mãos do jovem com a gabardine.

-Toda tua, Wyatt! Usa a miúda para criar o portal antes que ela acorde!

-Entendido!

Apanhando a Pedra de Ibniad com uma mão, segurou em Sochin, inconsciente, com o seu braço livre e começou um encantamento diferente, desta vez em voz alta. Aproximando a jóia do peito dela, continuou a repetir o encantamento enquanto o brilho da mesma começava a aumentar. De súbito uma aura branca engoliu a rapariga e o ar junto a eles começou a parecer distorcido. Rasgando o espaço, uma brecha grande o suficiente para lá caberem três adultos apareceu do ar. O seu interior era feito de luz difusa que girava numa espiral a ritmo descompassado.

Mas Kuroi não tirou os olhos da jovem adormecida. O seu corpo ainda brilhava em conjunto com a Pedra apesar de o portal estar feito, e a expressão de Wyatt mostrava bem o quão surpreendido este estava. Ao largar a Pedra, um som de estilhaços fez-se ouvir e o rosto da rapariga contorceu-se em sofrimento. Makoto, ainda no chão e voltado para cima, tentou abrir lentamente os olhos mas a luz forçou-o a pestanejar várias vezes antes de ser capaz de ver o que se passava.


-A pedra! Está... está a...

-O-o que é isto, Genji? - Perguntou Mera, visivelmente alarmada.

-É provável que ela ainda estivesse levemente consciente e tenha tentado resistir! - Respondeu ele, correndo na direcção da luz. Wyatt, afasta a Pedra dela!

O rapaz ruivo procurou pela jóia com as mãos, mas ao finalmente agarrá-la apercebeu-se de que só tinha metade na sua mão. Quando a luz se dissipou, a outra metade tornou-se visível embutida no peito da rapariga através das roupas rasgadas, como se sempre tivesse feito parte do seu corpo. Makoto tentou erguer-se, mas o choque fê-lo gelar no lugar como uma estátua.

Genji agarrou no braço de Mera e puxou-a consigo para junto do portal. Olhando para Wyatt, cortou firmemente através do ar com uma mão.

-Não interessa, levar metade da Pedra é tudo o que basta para fechar a brecha assim que entrarmos nela! Vamos, antes que a prisão do Seishin enfraqueça!

Os outros dois semideuses assentiram e entraram de imediato na distorção, que rodou ainda mais rapidamente com a passagem de cada um deles. Genji entrou por último, e o portal fechou-se no momento exacto em que este desapareceu através dele.

Sentindo a protecção mágica da rocha em seu redor finalmente enfraquecer, Kuroi quebrou as colunas com os nós dos dedos já em sangue por ter destruído a fonte. Makoto arrastou-se para junto da irmã, sofrendo com ansiedade. Colocou gentilmente uma mão no pescoço dela para saber se o coração ainda batia, e suspirou de alívio perturbado. ao senti-la mover subitamente, saltou para trás com a surpresa.

-WAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!

A rapariga berrava com os seus olhos esbugalhados e fitou o céu da mesma cor com uma expressão de terror no rosto. Kuroi cobriu os ouvidos por instinto ao ouvir o grito agudo, mas logo recuperou a calma e correu na direcção dela, alarmado.

-Sochin-san, por favor, acalma-te! - Disse-lhe, ajoelhando-se junto dos dois irmãos e agarrando na sua mão enquanto esta puxava a camisola rasgada para lhe cobrir o peito. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, rapidamente dissolvidas na água que ainda jorrava da fonte partida, e tremia descontroladamente. O brilho leve que ainda emanava da meia Ibniad no seu peito era visível pelos buracos do tecido e tremia com o seu corpo, perdendo gradualmente a intensidade até desaparecer por completo.

-Sochin... Sentes-te bem? Precisas de alguma coisa? - Perguntou Makoto de imediato, segurando-a nos seus braços.

Acalmando-se lentamente, voltou-se para o irmão e abraçou-o firmemente.

-Nii-chan... Tenho medo... O que é que me vai acontecer?!

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